Texto de Mauro Cruz
De fato, o tempo não torna a verdade aparente, e sim, encobre-a devido a tendências político-jurídicas dos historiadores que, na maioria das vezes, se prendem a medos, orgulhos pessoais e protecionismos de classes. A ausência, ou a omissão das autoridades, de literaturas referentes aos acontecimentos históricos junto à fantasiosa imaginação popular torna a luz da verdade diáfana, principalmente quanto à histórias que envolvem conflitos que resultam em crimes e culpados, como é o caso da "Questão do Abade", obrigando, em se tratando de acontecimento ocorrido há mais de um século, o historiador a ser impessoal e, baseado nos parcos documentos disponíveis, analisar através das entrelinhas e seguir a lógica e o bom senso, evitando julgamentos.
O garimpo é febril. Encontrar ouro é sempre uma busca, um desafio que estimula o homem a se embrenhar em terras hostis, atravessando matas, enfrentando feras, índios, doenças, fome e toda sorte de privações para, com os pés em águas frias e as costas sob o sol escaldante, cavando, lavando e espreitando o fundo da bateia, almejar uma realização humana máxima que é encontrar ouro em abundância, torna-se rico e poderoso. Descobrir o local do ouro e extraí-lo da terra, que o guarda desde a formação do mundo, é sinal de poder, um desafio às leis de Deus, uma prova da imagem e semelhança do Homem. Ter o ouro bruto nas mãos, após o suarento trabalho de garimpo, é uma espécie de nirvana da incansável procura do ser e, por sua glória, justifica a destruição da natureza, a mesquinharia humana e a morte de seus semelhantes.
Os portugueses começaram a minerar o ouro na serra dos Pireneus por volta de 1727, data da fundação do antigo arraial de Nossa Senhora do Rosário do distrito de Meia Ponte, hoje cidade de Pirenópolis do estado de Goiás, erigida aos pés desta serra. A abundância de ouro nesta serra era de tal maneira que em pouco tempo atraiu uma grande leva de estrangeiros à região em busca dos sonhos do fascinante metal. O contingente humano que principiou a colonização destas terras era composto, na sua maioria, de homens brancos, negros escravos e índios cativos, com pouquíssimas mulheres. Muitos destes homens eram fugitivos da lei ou de credores e para satisfazerem suas vontades sexuais juntavam-se a índias ou negras compondo famílias e gerando mestiços. As distâncias a serem percorridas desde São Paulo, donde vinham a maioria dos mineradores, eram custosas de serem transpostas. Gastavam-se meses, a pé ou no lombo de burros, por estradas precárias limitadas pelo clima, já que em épocas chuvosas, além do barro, muitas passagens de rios eram intransponíveis devido as cheias, tornando lentas as decisões da lei, que normalmente eram determinadas no local pelos interesses dos homens mais poderosos em números de escravos, capangas e armas. Somando a obsessão do ouro aos desmandos da ordem legal vigorou, sob tiros e facadas, uma população violenta e marginal num dos mais belos cenários da região do planalto central, a serra dos Pireneus.
A coroa portuguesa, através da administração paulista, tentava com muito custo controlar os impostos e a produção aurífera, reprimindo desmandos e contrabandos, muito comuns em Meia Ponte, como era denominada a atual cidade de Pirenópolis. Para isso contava com uma hierarquia voltada para produção das datas auríferas, territórios de minas que eram distribuídas aos descobridores. Aos descobridores eram cedidas as patentes de guarda-mor das minas.
Por volta de 1750, João Rodrigues Abade era o guarda-mor das minas que levava seu nome, as minas do abade, no alto da serra dos Pireneus, próximo ao arraial de Meia Ponte. Descendo as vertentes ao sudoeste dos três picos, cume desta serra, encontramos o vale do rio das Almas, rio que corta o arraial. O alto desta serra é muito belo, água limpa, muitas matas, inúmeras cachoeiras e o motivo da história, ouro, muito ouro. É lá onde se encontrava a fazenda Cabaceiros.
Um século depois, por volta de 1880, um escravo de nome Inácio, conhecido por Inácio do Abade, labutava por aquelas terras em busca de ouro. Homem rústico, lenhador e garimpeiro topava qualquer empreita que o senhor mandasse, caçar as temíveis onças comedoras de novilhas, de olho no lucro das peles; explodir minas; derrubar árvores centenárias para vender a madeira para construtores do cidade de Meia Ponte; além da lida com o gado, campeando novilha foragida pros lados da serra. Sobrevivência que aprendeu com seus patrões e pais, negros escravos de descendência africana. Conhecia muito bem aquela região, seus avós vieram a pé do litoral com João Rodrigues Abade, e como bom faiscador e garimpeiro, era muito requisitado para se embrenhar no mato. Inácio sabia onde encontrar muito ouro, um morro inteiro, para encher mil garrafas.
Certo dia, apareceu em Meia Ponte, um francês. Arguto pesquisador de ouro contratado pela Companhia Prado, viajava pela província de Goiás em busca de veios auríferos. Homem extremamente ilustrado em várias ciências, andava sempre de chapéu, culote e paletó brancos, botas altas, cartucheira e revólver na cintura, acompanhado de dois capangas armados de 44 e três enormes cães filas. O francês queria arrendar uma mina de ouro, dizia que tinha uma nova máquina que era capaz de fazer o serviço de muitos homens. Acomodou-se, ora em Corumbá, ora em Meia Ponte e com sua oratória cativante relacionou-se com as influentes famílias locais tornando-se figura estimada.
Descobriu seu intento quando conheceu o velho escravo Inácio que levou-o para a fazenda Cabaceiros na serra e durante muitos dias ficaram a batear os córregos e barrancos. O francês se preocupava demasiadamente com o curso dos rios, fazendo-os perseguir os córregos até as nascentes, medindo e escrevendo números. Gostou muito de um grande e íngreme barranco numa das cabeceiras de um córrego, o córrego do Abade, afluente do córrego da Barriguda, próximo a uma grande cachoeira, a cachoeira do Abade, no rio das Almas. Vários dias ficaram acampados no alto do morro entre a cachoeira e a cabeceira da barriguda, um lugar belíssimo, com uma esplêndida vista e inúmeras cachoeiras e poços. Por fim, Inácio e o francês dispersaram por sobre o barranco um clavinote de ouro em pó que serviria enganar os técnicos que traria posteriormente. Este francês chamava-se Bernard Alfred Amblard d'Arena.
No ano de 1880, Arena fundou a Sociedade d’Arena & Cia, arrendou a fazenda Cabaceiros e, como rezava a lei, quitou os devidos impostos e as concessões das datas auríferas ao Governo Geral e Provincial e, em 1881, prevenindo futuros incômodos, comunicou-se com a Câmara Municipal de Meia Ponte, solicitando que esta determinasse os dias em que a mina pudesse funcionar, em vista de livrar por certos dias da semana, a turbidez das águas do rio das Almas provocada pelo intenso garimpo, para que a população meiapontense se utilizasse das águas desse rio.
A Câmara meiapontense, então, respondeu a petição de Arena concedendo 4 dias por semana, de quarta ao sábado, para que funcionasse a mina, assim as águas turvas se limpariam no domingo e sobraria dois dias para o trabalho das lavadeiras e coleta de águas potáveis e, exigiam também, que Arena reativasse o chafariz da praça da Matriz. Requereram a imediata assinatura de um contrato, que puniria a Companhia em trinta mil réis (30$000), caso não cumprisse as determinações acordadas. Por algum motivo, Arena não aceitou as exigências contratuais, apesar de ter sido dele a iniciativa de parar o trabalho de desmonte nos dias determinados pela Câmara. Começa aqui a pendenga entre a Câmara meiapontense e a Sociedade d'Arena & Cia.
Amparado pelas leis vigentes, Arena iniciou os trabalhos preparatórios de exploração contratando diversos trabalhadores da região. Alguns destes eram camaradas de poderosos fazendeiros que, como era costume na época, deviam com seu trabalho o cumprimento de absurdos e escravizantes contratos de locação de serviços e para se livrar deste jugo fugiam para trabalhar com Arena, outro espinho no travesseiro dos meiapontenses.
O córrego da Barriguda corre, dentro da fazenda Cabaceiros, paralelamente ao rio das Almas e desemboca neste último ao pé da serra. A parte alta do Barriguda foi desviada por um rego calçado de pedras que rasgava os morros, transportando significante quantidade de água por quilômetros, pulando o vale e indo engrossar o caudal do rio das Almas. Juntos eram desviados de novo, só que desta vez, por um enorme bicame de grossas madeiras pichadas que transpunha um vão de aproximadamente quinhentos metros, saindo de cima da grande cachoeira do Abade e voltando para o córrego do Abade, afluente do Barriguda, transpondo de novo outro vale. Praticamente dois rios. Uma enorme quantidade de água para movimentar uma máquina holandesa de desmonte hidráulico, capaz de atingir até cinco gravidades de pressão da ponta de sua mangueira de vinte e dois centímetros de diâmetro. Foi montada uma serraria no sítio para construção do bicame, feito com grandes e grossas tábuas de madeira de lei. Para acomodação dos escravos, dos trabalhadores e do senhor Arena foi necessário construir uma vila, que chegou a ter próximo de trinta casas, a maioria delas de paredes de pedras e telhados de palhas. Arena então montou venda, farmácia e açougue em sua vila, fornecendo víveres e dívidas aos seus trabalhadores.
Sua casa, construída na parte mais alta da vila, era "vasta e toda caiada de branco, janelas envidraçadas, água encanada, escadaria na porta e calçamento ao redor. Num pátio interno plantou-se diversas árvores frutíferas e o chão cobertos de lajes. Mobiliou a casa com peças de fino lavor, diretamente vindas da Corte, cortinas e ricos tapetes. Fez uma sala de armas, toda forrada de veludo vermelho e cabides de chifres de caças, donde pendiam espingardas, clavinotes, revólveres, espadas, garruchas. Para a sala de refeições mandou fazer enorme mesa coberta duma laje de mármore, onde podiam assentar-se comodamente mais de doze pares. Sua mesa era das mais fartas e onde não era raro a "champanhe" e o legítimo "cognac" francês. Tal era a vivenda que em nada perderia às congêneres européias, e na qual se realizaram festas e bailes que marcaram época.
Junto a sua casa Arena ergueu uma loja de comércio. Mais abaixo, numa rua onde se alinhavam mais de vinte casas, quatro das quais cobertas de telhas, ficava a farmácia, numa esquina. Pouco além, num amplo cômodo de tijolos, o armazém ou depósito de gêneros. Depois deste, o açougue, no qual havia uma laje de enormes proporções onde se retalhavam os quartos das reses abatidas". Existia também "a casa da pólvora, uma casinha branca, coberta de telhas e toda de pedra, onde ficavam guardados os barris de pólvora e as munições (Luiz Reginaldo Fleurí Curado)".
O pequeno arraial era cercado por arames e mantinha duas porteiras, uma para os lados de Meia Ponte e outra para os lados de Corumbá, que eram mantinha cadeadas à noite e durante o dia somente a dos lados de Meia Ponte era mantida aberta. Em seu apogeu, este povoado chegou até a cunhar moeda própria, feitas de ouro ou de cobre com as seguintes gravações: "Válida-Arena" ou as iniciais de Alfredo de Arena.
Bicames prontos, cursos dos rios desviados, a máquina jorrou água limpa e produziu barro, ameaçando dissolver um baita barranco. Surgiu, então, a maior mineração aurífera de desmonte hidráulico do Brasil imperial e deste modo, o barrancão da fazenda Cabaceiros começou a ser desmontado e lavado, montes e montes de terra seguiram com a água no regurgito da máquina devoradora de rios, enlameando totalmente a água do córrego da Barriguda, que por sua vez, para revolta do povo meiapontense, entupia o rio das Almas, rio que corta a cidade, de lama e detritos da mineração.
Naquela época a cidade de Meia Ponte não contava com água encanada e os dois chafarizes existentes estavam avariados. A água para beber e cozinhar podia ser transportada às casas em vasos das diversas bicas e córregos da cidade, além do rio, que era usado para lavar roupas, higiene pessoal e refresco da população. Apesar da cidade ter convivido amistosamente com o garimpo poluidor das margens do rio desde a sua fundação, há aproximadamente 150 anos, foi justamente este o desagravo da Câmara e motivo alegado da rixa.
Frustadas as primeiras tentativas de negociações amigáveis entre Arena e a Câmara de Vereadores de Meia Ponte, esta se viu obrigada a conviver com um vizinho poluidor e independente politicamente, já que em nada podiam fazer contra a mineração devido ela estar legalmente amparada. À época as leis de proteção ambiental não existiam e o uso das águas do rio, quando não navegáveis, como é o caso, é de direito do proprietário das terras em que elas se encontram. Portanto as águas do rio da Almas não podiam ser consideradas de domínio público e a mineração podia usufruí-las do modo que lhe conviesse. Arena estava disposto a colaborar, junto com alguns ilustres moradores e autoridades, parte do capital para restaurar os chafarizes. Tal fato virou, também, motivo de pendengas: a Câmara alegava que Arena havia prometido doar dois contos de réis à empreita, enquanto este afirmava ter oferecido apenas um conto de réis.
Em função da peleja, Arena raramente ia a cidade, só assim o fazia fortemente armado e escoltado, entrando pelos bares com cavalo e tudo, babando nos balcões. Acusavam seus camaradas de farras abusivas com as meretrizes da cidade, obrigando-as a satisfazerem suas necessidade fisiológicas publicamente. Razão pela qual se relacionou apenas com a população de Corumbá, tanto que lá era pessoa influente chegando a montar entreposto comercial.
O sagrado rio das Almas estava, já a alguns anos, turvo, como nas áureas épocas da cidade, tanto nas chuvas como nas secas, impossibilitando o tradicional banho da população e o trabalho das lavadeiras. E poderia Arena, um francês, ganhar rios de dinheiro dentro das terras do município e não dividi-los com os hegemônicos coronéis das tradicionais famílias meiapontenses, que se enriqueceram com a sonegação dos impostos reais e com o ouro retirado à base de lama e mercúrio do cascalho do "sagrado" rio? Água não faltou, mas a paciência estava esgotando.
Em 1884, contando três anos de água suja, mal estar e revolta da população, a Câmara de vereadores da cidade mandou expediente direto à diretoria da Companhia de Mineração Goiana, nova razão social da antiga Sociedade D’arena e Cia, sediada em Formosa. Recebeu como resposta a ratificação da promessa de contribuir para a canalização das águas e construir uma fonte na praça da Matriz, mas não sem antes se isentar de qualquer imputação.
Por mais de ano o povo da cidade esperou em vão o prometido acordo entre as autoridades e a Companhia. No quarto ano de água suja e nervos à flor da pele, já no final de 1885, a câmara exigiu de Arena a assinatura de um contrato. Alegando problemas de saúde que o impossibilitava de descer à cidade, Arena solicitava que subissem com o contrato para que pudesse ele instruir seu procurador, porém não fora atendido.
O sangue explodiu nas cabeças meiapontenses, indo parar no fórum da cidade de Goiás, capital da província, que apelou à diretoria da Companhia para que entrassem em acordo com a Câmara da cidade "para que não sejam as águas do rio das Almas, indispensáveis ao abastecimento dessa cidade, danificadas pelas terras lançadas no seu afluente -- córrego do Abade". Insistindo Arena, em função de sua enfermidade de não poder comparecer a cidade, que mandassem dizer o que a Câmara desejasse, para que, entrando em contato com a diretoria da Companhia, pudesse, se fosse justo, tomar as devidas providências.
A guerra de ofícios, petições, bilhetes e intimações nada amigáveis teve como resultado uma ameaça de "atacar o Abade e expulsar dali o Dr. Arena". Injuriado com as ameaças e pressões, oficiais e extra oficiais, Arena responde num expediente, datado de 22 de fevereiro de 1886, dizendo: "Se esta Câmara tem intenção de mandar-me citar, vize ao menos os canais competentes e legais, porém, se é só com vistas de que eu mande parar o serviço da lavra desde já afirmo que não paro, a não ser por ordem do Governo Provincial, representante do Governo Geral, que concedeu posse e domínio, nas terras pertencentes à Companhia e com suas águas para trabalhar em mineração".
Arena, diante das adversidades promitentes, tratou de proteger-se das ameaças instalando um canhão, assentado numa colina adjacente ao povoado, que dominava os arredores e dois morteiros nos fundos de sua casa, armou seus capangas e, provocativamente, deu ordem ao capataz de não parar de jogar água no barranco.
Os ânimos esgotaram-se e a guerra fora declarada. Em março de 1886, o Palácio da Presidência de Goiás dirije-se novamente a diretoria da Companhia recomendando "que faça cessar qualquer trabalho que continue a danificar as águas do rio das Almas, ficando o mesmo desde já responsabilizado por qualquer alteração da ordem pública, provocada pela persistência de privar a população dessa cidade das únicas águas com que se abastecia".
Desta vez, Arena sentiu a picareta quebrar. Seu canhão tornara-se impotente ante o da força estadual. E como havia declarado, cumpriu a ordem provincial e parou com todo serviço de desmonte. À época corria boato que os resultados financeiros não estavam sendo satisfatórios e os balanços indicavam que o lucro da empreita não estavam sendo alto como prometido pela análise técnica fraudada. Mesmo assim a diretoria o apoiou e foram à diversos jornais goianos e uberabenses. Os protestos versavam sobre os direitos constitucionais de propriedade e usufruto das águas, denunciando arbitrariedades e ameaças da municipalidade da cidade de Meia Ponte, reclamando indenizações por perdas e prejuízos. Enaltecia a tecnologia utilizada e a incompreensão de se burlar as leis em função de uma microscópica população que se utiliza do rio para banheiro e algumas lavagens de roupas.
Tais protestos conseguiram convencer a opinião pública a pressionar o Governo Geral, no Rio de Janeiro, que, através do Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em 24 de fevereiro de 1887, determinou estar as minas funcionando legalmente revogando o ato de suspensão emitido pela província de Goiás, liberando, por fim, o trabalho das minas.
A incipiente história goiana é permeada de controvérsias e orgulhosas manipulações políticas, onde a lei é habilmente controlada pelas filtradas informações que a este estado demoravam muito a chegar e serem cumpridas, quando cumpridas, nas épocas das lamacentas estradas e carros de bois. Imperava moralmente o lema: fazer justiça com as próprias mãos. Um verdadeiro bang-bang caiapó.
E assim foi, rebelados contra a decisão do Governo Geral, na madrugada do dia 22 de março de 1887, um grupo de vinte e quatro jovens meiapontenses, chefiados por menores de idade, estratégia certa para protegê-los contra os processos e queixas que ocorreriam no futuro por parte da Companhia, fortemente armados, mascarados e com o rosto pintados de carvão, atearam fogo na porteira e invadiram o povoado das minas do Abade. Espancaram e amarraram os camaradas do Arena que tentaram, em vão, chegar à casa de pólvora. "A seguir avançaram sobre a casa principal, despedaçando cada uma de suas vidraças a pedradas. Com gritos, urros e tiros para o ar afugentaram os moradores, ateando fogo aos ranchos. Ato contínuo, deram volta aos cavalos e regressaram a Meia Ponte". Dois dias depois "o bando se apresenta novamente no arraial e expulsa definitivamente seus moradores. A golpes de machado abrem as portas da loja, da farmácia e do armazém, deixando tudo completamente saqueado. Entram a força na casa do francês, lascando e despedaçando todos os móveis a machadadas. O que podia ser carregado foi levado pelos componentes do bando. Os vidros de remédios da farmácia foram atirados fora e quebrados um a um.
Bárbara, a cozinheira de Arena, quando tentava fugir por uma das janelas dos fundos da casa, ficou presa pela saia; alguns dos atacantes aproveitando-se da sua incapacidade de se defender em tal situação, aplicaram-lhe forte dose de palmadas deixando-a quase desfalecida. A amásia do francês foi submetida a brutal tratamento em conseqüência do qual veio a torna-se cega (Luiz Reginaldo Fleurí Curado)".
Pouco restou daquele lugar. O fogo alastrou-se pelos telhados consumindo madeiras e palhas e destruindo as casas com os móveis e os objetos largados pelos moradores. As grossas paredes de pedras ruíram. O canhão rolou encosta abaixo. O grande bicame de madeira desmoronou a golpes de machados e fogo. A máquina holandesa foi destroçada e suas peças esparramadas pelas encostas. Cinco anos de provocações e água suja finalmente haviam acabados e em poucas horas o supra sumo da tecnologia de ponta aplicada à mineração aurífera na época, o suor e o trabalho de centenas de homens foram levados pela enxurrada de ânimos exaltados sujando, desta vez, o sagrado rio das Almas de violência e destroços.
Alfredo de Arena não se encontrava no local e quando teve notícias do levante e destruição da vila, não mais voltou ali. Mudou-se para Minas e morreu em princípios do século seguinte.
Um extenso processo rolou entre a Companhia contra o município de Meia Ponte, mas por incoerência da justiça ou por decisão divina, julguem vocês, nenhum culpado foi determinado e punido pela justiça.
A vila foi então, aos poucos, sendo saqueada pelos moradores de Meia Ponte e Corumbá. A máquina, ou o que sobrou dela, a Companhia resgatou e levou-a embora. E só sobrou ruínas de pedras e uma bela mordida no morro. O ouro mais uma vez mostrou seu poder.
*Os dados históricos, como nomes e datas, foram extraídos do "Esboço Histórico de Pirenópolis" de Jarbas Jaime, tomo I.
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